terça-feira, 17 de julho de 2012

Bule de Café e Amor



Texto e ilustração: Ricardo Rodrigues


Ana invadiu os sonhos dele, porque também estava sonhando. Nos sonhos, João desenhava um sol na parede de um quarto sem janela. João era pintor. Pintava gente. Abstrata, cubista, gente moderna e contemporânea. Gente. Gente de todos os tamanhos e cores. Com cabelo e sem cabelo. Mas no sonho pintou um sol, e sua pintura irradiou luz por todo o quarto, ofuscando os olhos de Ana. João acordou. Era a leiteira de Ana.

Ana acordara meia hora antes. O leite na leiteira já espumava.

A leiteira apita, tal dia como a madrugada. Antes, fizeram um amor fugaz. Na mesa o café respinga do bule. No coração, um alerta de amor, como o alerta na gamela onde o amanhecer fora anunciado. Ana e João brindaram com café e leite, brindam um amor sem propósito, sem roteiro, sem caminho... e por isso mesmo tão bom.

Ana serviu mais café para João, enquanto que este passava margarina no pão.

- Não...

João não queria mais pão. Serviu só de gula, o que queria era mais um beijo. Ana o deu esse beijo, adocicado com o mel de sua torradinha quase queimada.

O jornal estava lá fora, e o cachorro dormia. Por isso estava inteiro. O mundo não lhes interessava, porque o mundo, para eles, era aquela mesa, aquele bule e xícaras, o pão e o leite. Ah, o mel também, Ana adorava mel. João queria até aprender apicultura, só para fornecer-lhe o mel mais fresco todos os dias. Em troca, beijos de mel.

Durante o dia esperavam o vento balançar os seus cabelos. Era o vento do final da tarde. Então, João acendia o lampião do galpão para pintar suas gentes. Mas pintou também um sol, só que um sol de tinta não ilumina nada, só em sonho. Porém, quando acabou de pintá-lo, virou dia dentro do galpão que até estão estava mergulhado nas trevas noturnas, salvo por um lampião. Era como se mil pequeninas estrelas tivessem voado para dentro do lugar. Era ele, o sol de tinta.

- Mas como? - falou Ana, surpresa.

E os dois, um segurando a mão do outro, perceberam que ainda estavam dentro do sonho, e que um dia inteiro pode ser apenas sonho.

Mas Ana não queria acordar, nem João. Pois ainda sentiam o gosto do café nos lábios um do outro. Mas o sol fora anunciado, e aos poucos se infiltrou nas persianas dos seus olhos.

Não seria a mesma coisa. Não seria nem de longe parecido, nem de perto, nem de jeito nenhum. Pois os sonhos são sempre abstratos, e a vida dura e seca, como se fosse tinta seca. Mas os dias acabam, e juntos disseram:

- Adeus dia, olá noite, até amanhã.

Ambos precisavam dormir, apenas dormir.

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