D. Olinda era uma senhora muito velha, mais do que era capaz de se lembrar. Dedicava todo seu tempo cuidando do filho doente, Adolfo, um homem que estava condenado a não conhecer nada da vida, a não ser o amor da mãe. Ele passava o dia escutando marchinhas de carnaval. “Ô abre alas que eu quero passar, ô abre alas que eu quero passar!”, “Mamãe eu quero, mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar!”. D. Olinda Vivia, também, com a presença do espectro do marido recentemente falecido. Havia, ainda, a presença do cão surdo Duque, um cachorro que devia ter para lá de cinqüenta anos. Estava muito cansada de todas as coisas que algumas pessoas diziam ser o destino, muito cansada.
Em uma manhã de vinte e nove de fevereiro, escapando das serpentinas e dos confetes e bêbados do último dia do carnaval, encontrou o filho morto, vestindo sua fantasia de pirata. Na vitrola de outras décadas, o disco de vinil girava mudo. Custou-lhe a manhã inteira e mais um pedaço da tarde tirar a roupa de pirata de Adolfo e vesti-lo com a indumentária de defunto. Terno preto com gravata cinza. Havia comprado o terno há muitos anos, sabia que o filho iria vestir-se para aquela ocasião antes que ela própria morresse. A pele de Adolfo estava cor amarelo polenta, do jeito que sempre fora.
Durante a noite o corpo foi velado. Dava para contar nos dedos de uma só mão o número de pessoas presentes, pois estavam todos ainda incorporados pelos foliões e seus ossos enterrados. Uma das vizinhas que foi velar o morto disse “Eu vi, eu disse para meu marido, olha lá, a lua tá se repartindo! Não é bom sinal!”. Na avenida em frente ao cemitério, um último bloco passava cantando Chiquinha Gonzaga. Vendo o filho deitado, com seu cabelo penteado e perfume e algodão nas narinas, percebeu que sua vida havia terminado também. Afinal, não tivera outro motivo para acordar em cada manhã dos últimos trinta e cinco anos a não ser Adolfo. A música que vinha da rua tocava seu coração. Seus batimentos cardíacos eram tambores bombeando sangue, acompanhados pelo pandeiro de sua respiração ritmada e ansiosa e a cuíca de seu pranto. Aos primeiros raios do sol enterrou o corpo de seu filho folião virgem. Secou uma lágrima de despedida.
Quando chegou em casa, acompanhada pelo cachorro surdo, a bandinha estava em silêncio. Mais um carnaval se ia embora. Porém, precisava manter vivo o carnaval de Adolfo. Como jamais gostara da farra desta festa tão popular, precisou reunir todos os discos do filho, enciclopédias que falavam sobre o assunto e registros visuais sobre o carnaval para construir uma imagem mental de algo que era a extensão de Adolfo. Passou por todo o carnaval brasileiro, e cada estado apresentava certas particularidades que lhe divertiram e lhe chocavam, como as moças seminuas no Rio de Janeiro. Viu o carnaval de máscaras em Veneza, e o desfile em New Orleans. Escutou os grandes compositores, e em dois dias o carnaval estava mais vivo do que nunca em seu coração. Tanto que, em pouco tempo, a única lembrança que conseguia registrar eram as festas, e Adolfo foi, pouco a pouco, se perdendo na multidão de foliões que ocupou a sua memória.
(Baseado em uma história verdadeira de muitos carnavais)
2005
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