segunda-feira, 21 de julho de 2014

O Carnaval de Olinda









D. Olinda era uma senhora muito velha, mais do que era capaz de se lembrar. Dedicava todo seu tempo cuidando do filho doente, Adolfo, um homem que estava condenado a não conhecer nada da vida, a não ser o amor da mãe. Ele passava o dia escutando marchinhas de carnaval. “Ô abre alas que eu quero passar, ô abre alas que eu quero passar!”, “Mamãe eu quero, mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar!”. D. Olinda Vivia, também, com a presença do espectro do marido recentemente falecido. Havia, ainda, a presença do cão surdo Duque, um cachorro que devia ter para lá de cinqüenta anos. Estava muito cansada de todas as coisas que algumas pessoas diziam ser o destino, muito cansada.

Em uma manhã de vinte e nove de fevereiro, escapando das serpentinas e dos confetes e bêbados do último dia do carnaval, encontrou o filho morto, vestindo sua fantasia de pirata. Na vitrola de outras décadas, o disco de vinil girava mudo. Custou-lhe a manhã inteira e mais um pedaço da tarde tirar a roupa de pirata de Adolfo e vesti-lo com a indumentária de defunto. Terno preto com gravata cinza. Havia comprado o terno há muitos anos, sabia que o filho iria vestir-se para aquela ocasião antes que ela própria morresse. A pele de Adolfo estava cor amarelo polenta, do jeito que sempre fora.

Durante a noite o corpo foi velado. Dava para contar nos dedos de uma só mão o número de pessoas presentes, pois estavam todos ainda incorporados pelos foliões e seus ossos enterrados. Uma das vizinhas que foi velar o morto disse “Eu vi, eu disse para meu marido, olha lá, a lua tá se repartindo! Não é bom sinal!”. Na avenida em frente ao cemitério, um último bloco passava cantando Chiquinha Gonzaga. Vendo o filho deitado, com seu cabelo penteado e perfume e algodão nas narinas, percebeu que sua vida havia terminado também. Afinal, não tivera outro motivo para acordar em cada manhã dos últimos trinta e cinco anos a não ser Adolfo. A música que vinha da rua tocava seu coração. Seus batimentos cardíacos eram tambores bombeando sangue, acompanhados pelo pandeiro de sua respiração ritmada e ansiosa e a cuíca de seu pranto. Aos primeiros raios do sol enterrou o corpo de seu filho folião virgem. Secou uma lágrima de despedida. 

Quando chegou em casa, acompanhada pelo cachorro surdo, a bandinha estava em silêncio. Mais um carnaval se ia embora. Porém, precisava manter vivo o carnaval de Adolfo. Como jamais gostara da farra desta festa tão popular, precisou reunir todos os discos do filho, enciclopédias que falavam sobre o assunto e registros visuais sobre o carnaval para construir uma imagem mental de algo que era a extensão de Adolfo. Passou por todo o carnaval brasileiro, e cada estado apresentava certas particularidades que lhe divertiram e lhe chocavam, como as moças seminuas no Rio de Janeiro. Viu o carnaval de máscaras em Veneza, e o desfile em New Orleans. Escutou os grandes compositores, e em dois dias o carnaval estava mais vivo do que nunca em seu coração. Tanto que, em pouco tempo, a única lembrança que conseguia registrar eram as festas, e Adolfo foi, pouco a pouco, se perdendo na multidão de foliões que ocupou a sua memória.


(Baseado em uma história verdadeira de muitos carnavais
2005

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