sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O Amor na Terapia - Sessão 5: Você recebeu alta, vá sonhar acordada






Naquele dia, que seria a quinta sessão de terapia, ela acordou com a sensação de que muito tempo havia se passado.

O tempo é relativo, diria o terapeuta. Pôde ouvir direitinho sua voz ao soltar aquela frase. E de fato era. Mas na verdade o tempo lhe pareceu ter passado mais rápido.

Tanto que sentiu até uma certa afeição por seu terapeuta.

Não sexualmente falando, mas sim de um jeito diferente. Ele já fazia parte da sua rotina.

Sentia prazer em arrumar-se para ir na terapia.

Não sabia dizer o quanto estava funcionando, ou se realmente estava, mas precisava continuar.

Havia acordado de tão bom humor que pensou em levar uma flor para a recepcionista, a senhorinha. Para o terapeuta não seria de bom tom, e nem profissional da parte dele aceitar.

No dia anterior, a senhorinha havia ligado para antecipar a consulta, pois o terapeuta teria um compromisso no horário em que costumava lhe atender.

“Tudo bem, sem problemas!”

E assim foi.  Como sairia mais cedo, daria tempo de um happy hour com as amigas, as quais toda semana perguntavam como estava a terapia.

Nunca tinha muito o que dizer.

Mas queria beber alguma coisa, conversar.

Queria contar que ainda não havia marcado o novo encontro com o tal homem, mas que estava decidida a não deixar passar.

E isso seria um dos pontos da sessão de hoje.



No consultório, entregou a flor para a senhorinha. Pela reação, nunca nenhum paciente havia feito tal gesto.

Ela agradeceu, ruborizada, e pediu que aguardasse enquanto o paciente anterior não saísse.

Havia música ambiente.

Era uma dessas rádios de elevador. E notou que havia umas revistas na mesinha de centro.

Revistas velhas de fofoca.

Se viu inundada por um ambiente tão chichê que sentiu um certo medo.

Era como se estivesse sendo forçada a sair daquela zona de conforto que era uma situação conhecida. Pensou isso, e riu, era como um terapeuta questionaria, talvez.

O paciente anterior saiu. Percebeu que era a primeira consulta, pois o olhar estranho era o mesmo que o seu naquele dia, cinco semanas atrás.

“Pode entrar”, disse a senhorinha.

Estranhou ele estar usando uma camisa que não fosse a xadrez em cores. Vestia uma camisa azul-marinho, um tanto formal. E usava sapatos Oxford. Digno de post de blogs de moda, pensou.

- Vamos começar. Você tem dormido bem?

Perguntou ele.

- Sim. Mas por quê?

- Quero saber se o seu sono tem sido satisfatório, se você tem sonhado durante ele.

- Ah... as vezes sim. Digo, sobre os sonhos. Por que tenho dormido até que bem. Às vezes demoro para pegar no sono, mas... espera, você não vai querer interpretar meus sonhos, né? Porque isso eu descubro comprando uma revistinha na banca ou pesquisando na internet.

Ele continuou em silêncio, e a expressão dura deixou-a tão desconcertada que sentiu seu corpo congelar.

Continuou falando.

- Enfim, eu... eu tenho dormido bem, e também sonhado.

- Você devia sonhar acordada, não dormindo. E não, eu não iria analisar seus sonhos. Embora, na psicanálise, costumamos dizer que dentro de cada um de nós há um outro que se comunica pelos sonhos. Jung.

- Quê?

- Nada.

Silêncio.

Ele anotou alguma coisa e disse.

- Você deveria sonhar mais acordada. Sim. Porque a gente sempre pressupõe que o sonho durante o sono é uma bobagem aleatória. O sonho em estado desperto, eu te digo, é o que vai mexer seu corpo pra conquistar isso.

Ela achou aquilo um tanto parecido com as mensagens dos livros estilo minuto de sabedoria, mas tinha um fundo de verdade.

- Você não é do tipo que costuma sonhar e projetar as coisas. Você é do tipo que senta no sofá assistindo Supercine desejando as coisas, mas com aquele misto de autopiedade que faz com que seja sempre a vítima. Você tem muitas qualidades, mas as anula com receio de que os outros vão achar inferiores. Você é tímida demais, e isso não é um problema de fato, mas os outros acabam vendo como um ponto negativo, como falta de interesse, toda vez que você fica calada, mas no fundo querendo expressar um universo inteiro. A vida, minha querida, a vida corre e galopeia que nem um cavalo xucro. A vida passa e o dia de hoje será mais esquecido que a carreira da artista que hoje você cultua. A vida é um meme que nasceu hoje pra ser inutilizado amanhã. A vida é uma maionese estragada que se você comeu depois de passar do ponto, vai sofrer e quem sabe morrer. A vida é uma xícara de café que se você esquece de beber, esfria e fica insuportável. Querida, a vida é aquele cupcake que você vê na vitrine da padaria e fica morrendo de vontade de comer, mas quando morde descobre que é seco. Mas é assim mesmo, se não o comesse, não saberia. A vida às vezes tem um gosto seco mesmo. A vida é como um relatório de desempenho no trabalho. Você odeia ter que relembrar certas partes, mas apontar os pontos ruins e positivos é bom para um resultado melhor no futuro. Por isso tenha em mente, querida, que você precisa preparar seu relatório. E nesse caso, pensar no que vale a pena.

Ela ficou estupefata.

Abobalhada mesmo. Todas aquelas palavras saíram como tiros de metralhadora.

“Acabei de levar um tiro aqui dentro do consultório”, pensou.

Achou que ele fosse meio maluco, mas as palavras faziam tanto sentido que não ousou reclamar.

Ela olhou pela janela e um vento fraco movimentava as árvores. Sim, ela usou esse cenário para imaginar a cena de um filme qualquer. Desses que ela via no Supercine se martirizando.

E por isso mesmo resolveu apertar o stop desse filme. E disse.

- Eu tenho sonhado muito acordada. Tenho sonhado com esse homem que quer sair comigo, tenho sonhado acordada com muitas coisas que vão mudar a minha vida em um longo prazo. Tenho sonhado acordada em me olhar no espelho e ver uma outra mulher dentro da mesma mulher. Tenho sonhado acordada com os períodos de solidão que sempre me colocaram tanto medo. Tenho sonhado acordada em participar da próxima sessão dessa terapia. Tenho sonhado acordada com os dias de verão que eu não vá reclamar tanto do calor. Tenho sonhado acordada com uma bateria de celular que dure mais tempo. Tenho sonhado acordada com o livro que vou retomar a leitura. Tenho sonhado acordada com o relógio fora da gaveta. Tenho sonhado. Apenas.

Ele ouvia tudo com atenção, e sem anotar nada.

Parecia ele o paciente curioso. Ela, a terapeuta o fazendo pensar.

Ficaram os dois em silêncio por cerca de dez minutos. Longos dez minutos.

Ela não tinha mais a sensação de precisar falar, mas sim a de que tudo tinha sido dito na hora certa.

E como se escutasse os seus pensamentos – talvez pudesse – ele falou:

- Estou te dando alta. Pode ir.

Ela achou um tanto absurdo, inesperado. Foram apenas cinco sessões.

Cinco sessões que haviam mexido com muitas coisas, era bem verdade.

Soltou outro de seus suspiros infantis, daqueles que estremecem as bochechas, levantou-se e apertou sua mão. Iria acertar a conta com a senhorinha.

E assim como qualquer outro paciente, ela fechou a porta, para nunca mais ser vista.




Era agora um momento que nenhum de seus pacientes conhecia.

Ele foi até a gaveta e pegou o relógio. Estava de fato estragado.

No seu celular, o horário informava que estava quase na hora de seu compromisso.

*Notificação de mensagem*

Era uma SMS. Uma mensagem que lhe doeu ler. Porque, quando se trata de um rompimento de amor recente, pequenas palavras, mesmo sem a intenção, acabam destrinchando uma ferida que tenta coagular o sangue.

Respirou fundo e saiu. Essa SMS seria mais um tópico a discutir na sua sessão de terapia. De fato, era o amor na terapia. Ou a falta dele.



FIM


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P.S.: Obra ficcional. O objetivo não é proporcionar nenhum tipo de diagnóstico. Em casos de algum problema, procure um profissional habilitado. :D 

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