Naquele
dia, que seria a quinta sessão de terapia, ela acordou com a sensação de que
muito tempo havia se passado.
O
tempo é relativo, diria o terapeuta. Pôde ouvir direitinho sua voz ao soltar
aquela frase. E de fato era. Mas na verdade o tempo lhe pareceu ter passado
mais rápido.
Tanto
que sentiu até uma certa afeição por seu terapeuta.
Não
sexualmente falando, mas sim de um jeito diferente. Ele já fazia parte da sua
rotina.
Sentia
prazer em arrumar-se para ir na terapia.
Não
sabia dizer o quanto estava funcionando, ou se realmente estava, mas precisava
continuar.
Havia
acordado de tão bom humor que pensou em levar uma flor para a recepcionista, a
senhorinha. Para o terapeuta não seria de bom tom, e nem profissional da parte
dele aceitar.
No
dia anterior, a senhorinha havia ligado para antecipar a consulta, pois o
terapeuta teria um compromisso no horário em que costumava lhe atender.
“Tudo
bem, sem problemas!”
E
assim foi. Como sairia mais cedo, daria
tempo de um happy hour com as amigas, as quais toda semana perguntavam como
estava a terapia.
Nunca
tinha muito o que dizer.
Mas
queria beber alguma coisa, conversar.
Queria
contar que ainda não havia marcado o novo encontro com o tal homem, mas que
estava decidida a não deixar passar.
E
isso seria um dos pontos da sessão de hoje.
No
consultório, entregou a flor para a senhorinha. Pela reação, nunca nenhum
paciente havia feito tal gesto.
Ela
agradeceu, ruborizada, e pediu que aguardasse enquanto o paciente anterior não
saísse.
Havia
música ambiente.
Era
uma dessas rádios de elevador. E notou que havia umas revistas na mesinha de
centro.
Revistas
velhas de fofoca.
Se
viu inundada por um ambiente tão chichê que sentiu um certo medo.
Era
como se estivesse sendo forçada a sair daquela zona de conforto que era uma
situação conhecida. Pensou isso, e riu, era como um terapeuta questionaria,
talvez.
O
paciente anterior saiu. Percebeu que era a primeira consulta, pois o olhar
estranho era o mesmo que o seu naquele dia, cinco semanas atrás.
“Pode
entrar”, disse a senhorinha.
Estranhou
ele estar usando uma camisa que não fosse a xadrez em cores. Vestia uma camisa
azul-marinho, um tanto formal. E usava sapatos Oxford. Digno de post de blogs
de moda, pensou.
-
Vamos começar. Você tem dormido bem?
Perguntou
ele.
-
Sim. Mas por quê?
-
Quero saber se o seu sono tem sido satisfatório, se você tem sonhado durante
ele.
-
Ah... as vezes sim. Digo, sobre os sonhos. Por que tenho dormido até que bem.
Às vezes demoro para pegar no sono, mas... espera, você não vai querer
interpretar meus sonhos, né? Porque isso eu descubro comprando uma revistinha
na banca ou pesquisando na internet.
Ele
continuou em silêncio, e a expressão dura deixou-a tão desconcertada que sentiu
seu corpo congelar.
Continuou
falando.
-
Enfim, eu... eu tenho dormido bem, e também sonhado.
-
Você devia sonhar acordada, não dormindo. E não, eu não iria analisar seus
sonhos. Embora, na psicanálise, costumamos dizer que dentro de cada um de nós
há um outro que se comunica pelos sonhos. Jung.
-
Quê?
-
Nada.
Silêncio.
Ele
anotou alguma coisa e disse.
-
Você deveria sonhar mais acordada. Sim. Porque a gente sempre pressupõe que o
sonho durante o sono é uma bobagem aleatória. O sonho em estado desperto, eu te
digo, é o que vai mexer seu corpo pra conquistar isso.
Ela
achou aquilo um tanto parecido com as mensagens dos livros estilo minuto de
sabedoria, mas tinha um fundo de verdade.
-
Você não é do tipo que costuma sonhar e projetar as coisas. Você é do tipo que
senta no sofá assistindo Supercine desejando as coisas, mas com aquele misto de
autopiedade que faz com que seja sempre a vítima. Você tem muitas qualidades,
mas as anula com receio de que os outros vão achar inferiores. Você é tímida
demais, e isso não é um problema de fato, mas os outros acabam vendo como um
ponto negativo, como falta de interesse, toda vez que você fica calada, mas no
fundo querendo expressar um universo inteiro. A vida, minha querida, a vida
corre e galopeia que nem um cavalo xucro. A vida passa e o dia de hoje será
mais esquecido que a carreira da artista que hoje você cultua. A vida é um meme
que nasceu hoje pra ser inutilizado amanhã. A vida é uma maionese estragada que
se você comeu depois de passar do ponto, vai sofrer e quem sabe morrer. A vida
é uma xícara de café que se você esquece de beber, esfria e fica insuportável.
Querida, a vida é aquele cupcake que você vê na vitrine da padaria e fica
morrendo de vontade de comer, mas quando morde descobre que é seco. Mas é assim
mesmo, se não o comesse, não saberia. A vida às vezes tem um gosto seco mesmo.
A vida é como um relatório de desempenho no trabalho. Você odeia ter que
relembrar certas partes, mas apontar os pontos ruins e positivos é bom para um
resultado melhor no futuro. Por isso tenha em mente, querida, que você precisa
preparar seu relatório. E nesse caso, pensar no que vale a pena.
Ela
ficou estupefata.
Abobalhada
mesmo. Todas aquelas palavras saíram como tiros de metralhadora.
“Acabei
de levar um tiro aqui dentro do consultório”, pensou.
Achou
que ele fosse meio maluco, mas as palavras faziam tanto sentido que não ousou
reclamar.
Ela
olhou pela janela e um vento fraco movimentava as árvores. Sim, ela usou esse
cenário para imaginar a cena de um filme qualquer. Desses que ela via no
Supercine se martirizando.
E
por isso mesmo resolveu apertar o stop desse filme. E disse.
-
Eu tenho sonhado muito acordada. Tenho sonhado com esse homem que quer sair
comigo, tenho sonhado acordada com muitas coisas que vão mudar a minha vida em
um longo prazo. Tenho sonhado acordada em me olhar no espelho e ver uma outra
mulher dentro da mesma mulher. Tenho sonhado acordada com os períodos de
solidão que sempre me colocaram tanto medo. Tenho sonhado acordada em
participar da próxima sessão dessa terapia. Tenho sonhado acordada com os dias
de verão que eu não vá reclamar tanto do calor. Tenho sonhado acordada com uma
bateria de celular que dure mais tempo. Tenho sonhado acordada com o livro que
vou retomar a leitura. Tenho sonhado acordada com o relógio fora da gaveta.
Tenho sonhado. Apenas.
Ele
ouvia tudo com atenção, e sem anotar nada.
Parecia
ele o paciente curioso. Ela, a terapeuta o fazendo pensar.
Ficaram
os dois em silêncio por cerca de dez minutos. Longos dez minutos.
Ela
não tinha mais a sensação de precisar falar, mas sim a de que tudo tinha sido
dito na hora certa.
E
como se escutasse os seus pensamentos – talvez pudesse – ele falou:
-
Estou te dando alta. Pode ir.
Ela
achou um tanto absurdo, inesperado. Foram apenas cinco sessões.
Cinco
sessões que haviam mexido com muitas coisas, era bem verdade.
Soltou
outro de seus suspiros infantis, daqueles que estremecem as bochechas,
levantou-se e apertou sua mão. Iria acertar a conta com a senhorinha.
E
assim como qualquer outro paciente, ela fechou a porta, para nunca mais ser vista.
Era
agora um momento que nenhum de seus pacientes conhecia.
Ele
foi até a gaveta e pegou o relógio. Estava de fato estragado.
No
seu celular, o horário informava que estava quase na hora de seu compromisso.
*Notificação
de mensagem*
Era
uma SMS. Uma mensagem que lhe doeu ler. Porque, quando se trata de um
rompimento de amor recente, pequenas palavras, mesmo sem a intenção, acabam
destrinchando uma ferida que tenta coagular o sangue.
Respirou
fundo e saiu. Essa SMS seria mais um tópico a discutir na sua sessão de
terapia. De fato, era o amor na terapia. Ou a falta dele.
FIM
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P.S.:
Obra ficcional. O objetivo não é proporcionar nenhum tipo de diagnóstico. Em
casos de algum problema, procure um profissional habilitado. :D
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