sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O Médico e a Mulher Infeliz: Capítulo 20 - FINAL




Capítulo 20
FINAL


Um mês se passou e chegou o dia do julgamento. Delegado Miranda, tomado de súbito por uma lucidez profissional e resolvido a encerrar aquele caso com êxito, esteve com a acusada na prisão. Ele entrou na cela, e teve a nítida sensação de ainda sentir o perfume da mulher, ainda que ela não estivesse usando nada além do sabão de glicerina em barra que lhe entregavam na hora do banho. Ainda teve tempo de pensar que era bela demais, mesmo mal vestida. Voltou a si. Rosaura o olhou com um risinho de deboche no canto da boca, o que o fez pensar que talvez ela não estivesse mais de posse de suas faculdades mentais.
- D. Rosaura, vim conversar com você sobre...
- Sobre o quê? Veio dizer que venceu? – falou, desaforada.
- Já está quase na hora do julgamento, você não vai escapar.
- Morra, seu estafermo. Sou linda e rica, vou escapar dessa. – disse ela, num grau de desacato que provocou um arrepio gelado no homem.
“Será uma praga rogada?”, pensou ele. Então sorriu, tentando manter o controle, e saiu da cela.
Rosaura terminou de pentear o cabelo e foi para uma ante sala, onde aguardaria ser chamada para o tribunal. Estava tranquila, o que admirou as carcereiras. Equanto aguardava, deixou uma lágrima escorrer pelo seu rosto ao lembrar-se de Leandro. Ah, o jovem e belo Leandro, o qual não via desde antes das mortes em seus aposentos. Sentiu uma saudade cortante do garoto que lhe trouxe um pouco de verdadeira felicidade. Mas então lembrou-se dos seus planos com Dr. Alberto, e a capa de mulher fria lhe cobriu o corpo novamente, e já era Rosaura Albuquerque, a viúva negra de Porto Alegre novamente, conforme fora apelidada pela imprensa.

***

- D. Rosaura, a senhora está pronta?
Era início da tarde quando a carcereira entrou na pequena sala para avisar que seria chamada. Rosaura levantou sem dizer nada e adentrou no corredor, altiva, como se fosse a líder de qualquer coisa. Seria julgada, e no fundo isso a aterrorizava, não nasceu para a vida de detenta. Por outro lado, tinha certeza que estava a poucos passos da liberdade.
Chegou na escada que conduzia para o interior o tribunal e aguardou alguns segundos. Ouviu muitas vozes, a sala estava lotada, afinal, o caso ganhara muita repercussão.
- Que entre a acusada!
Disse o juiz. Rosaura subiu as escadas e aos poucos foi se deparando com olhares inquisidores à sua volta. Em algum canto estavam Valdeli e a criada Julia, essa em uma ânsia sem limites pela condenação da vagabunda. As mulheres a odiavam, os homens no fundo a desejavam. Dr. Jonas estava em seu lugar, e segundo ele, tudo daria certo. Mas já não tinha tanta certeza.
- D. Rosaura, no caso da morte de seu marido, Dr. Abílio Albuquerque, a senhora declara-se culpada ou inocente?
- Inocente.
Burburinhos ecoaram por todo o ambiente. Após pedido de ordem, o julgamento, enfim, inicia.
- Jura dizer a verdade, somente a verdade, nada mais do que a verdade?
- Juro.
Respondeu seca, com a mão sobre uma bíblia, e há quem diga que pôde ver fumaça saindo do livro sagrado. O Juiz começa o interrogatório à acusada. Durante cerca de uma hora Rosaura respondeu perguntas diversas, que trouxeram a tona aspectos tanto de sua vida conjugal com o falecido quando de sua vida de solteira.
- Eu me casei cedo, muito cedo. Abílio era mais velho do que eu, maduro, experiente, fiquei encantada com ele.
- A senhora veio de uma família tradicional?
Apesar de achar a pergunta extremamente tendenciosa, Rosaura respondeu:
- Não senhor. Venho de uma família humilde. Nasci no bairro Rubem Berta, e tenho orgulho de minhas raízes. Sou uma mulher grata por ter encontrado um homem maravilhoso como Alberto.
- E como foram os anos de matrimônio?
- Foram ótimos... no início. Tivemos um tempo em que Abílio ficou afastado, não me procurava... – sentiu que causou desconforto por esse comentário – mas isso é comum em qualquer casamento...
Rosaura sentiu que os comentários afirmavam: ela mandou matar o marido porque estava infeliz. Uma ideia estúpida e pobre de imaginação, pensou.
A seguir Dr. Jonas entrou com a defesa. Baseou o seu trabalho no fato de Rosaura ter sido sempre uma mulher dedicada ao casamento, às causas sociais da cidade, e revelou um fato que surpreendeu a todos: Abílio estava com as finanças comprometidas.
- O falecido não estava bem financeiramente. Apesar da clínica trazer muito prestígio e proventos para os envolvidos, Dr. Abílio estava, há alguns meses, envolvido com dívidas de jogo. Perdeu muito dinheiro, recorreu a agiotas, estava devendo valores exorbitantes. Portanto, conforme a imprensa e acredito eu que o advogado de acusação irá proferir, minha cliente não possui qualquer ligação com o crime, seja por dinheiro ou não, afinal, o marido estava falido.
Rosaura de fato não sabia do ocorrido, e precisou reunir forças para disfarçar perante o júri, afinal, o Dr. Jonas colocou o fato como se a viúva soubesse dos problemas financeiros do marido. Sim, Dr. Jonas era um advogado perspicaz e também truqueiro.
“Esse idiota devia ter me avisado antes”, pensou, “não estava preparada. Afinal, tanta morte por nada? Não havia dinheiro nenhum?”.
E Dr. Jonas chamou testemunhas para o interrogatório. O júri ouviu a empregada Valdeli, a criadinha obviamente não fora chamada, pois Rosaura alertou seu advogado do ocorrido antes, chamou também a secretária Nina, que nada contra falou, pois tinha o rabo preso, e também pessoas ligadas às movimentações financeiras de Abílio. Ainda teria mais pessoas para interrogar, porém, em um segundo momento.

O juiz estipulou um recesso de 15 minutos para acalmar os ânimos dos presentes que começavam a se revoltar com a posição de coitada da acusada. No corredor do lado de fora, Miranda interpelou o advogado de defesa.
- Eu já compreendi seu jogo. Aposto que Rosaura não sabia coisa nenhuma dessa suposta falência. Isso é invenção sua, seu inescrupuloso.
- Cuidado com o que diz, seu besta. Depois de muito tempo resolveu virar detetive? Não se cansou do fiasco retratado pela imprensa? Se coloque no seu lugar, seu merda. E cuidado com o que diz, até porque, nada você pode provar.
Miranda ficou ali, com um copo de café na mão, apático, sem reação. Sentiu um assombro: teve a certeza de que o caso seria ganho por Jonas, e sua carreira estaria, enfim, arruinada.
No retorno, chegou a vez da acusação conduzir as perguntas. Um homem chamado Jerônimo Gonçalves, que possuía uma reputação sólida no meio. Como primeira testemunha chamou o jovem Leandro. Rosaura teve uns tremores quando ouviu seu nome, uns tremores que vinham de seus órgãos genitais e fizeram seu corpo todo se chacoalhar por alguns segundos. “Que saudade desse homem, santo Deus, que saudade!!”, pensou ela, a ponto de chorar.
- Dr. Leandro, o senhor, conforme foi apurado nos autos, sentia-se fortemente atraído pela acusada.
- Ora, qualquer homem se sentiria.
- Vocês se conheceram na clínica. Me diga, Dr. Leandro, chegou a manter um caso com a acusada?
- Eu...
- Manteve relações sexuais com D. Rosaura?
- Eu... eu não entendo o que quer dizer... estão me acusando de indecência!!!!! Eu a amo!!! – esbravejou Leandro, exasperando-se.
- Responda ao que lhe foi perguntado – disse o juiz.
- Ok, eu a comi!!!! Eu a comi!!!!!!!
Rosaura baixou o rosto. Não por vergonha, mas por medo de que aquela explosão pudesse atrapalhar seu caso.
- Alguma vez Rosaura demonstrou querer livrar-se do marido, digo, separar-se?
- Ela... ela estava claramente infeliz, deprimida, precisando de um homem de verdade e...
- Sem mais perguntas.
Rosaura foi chamada, então, para ser interrogada. Estava no centro do tribunal, olhada por todos os ângulos. Sentiu-se nua.
- D. Rosaura, qual sua ligação com Dr. Alberto, sócio de seu finado marido?
- Nenhuma, ele era amigo e sócio de meu marido.
- E o que ele fazia no seu quarto, morto, ao lado de seu motorista?
Rosaura sentiu-se levemente gelada.
- A morte de João foi uma tristeza. Eu acredito que Alberto tenha entrado, a porta estava aberta. As criadas tinham ido ao mercado. Foi me procurar para falar da clínica, imagino, e subiu as escadas. João, que achou se tratar de um ladrão, ia atirar no homem, mas como Alberto andava carregando uma arma, por medo, atirou antes no motorista. E por remorso, atirou em si próprio.
Dr. Jonas enrugou a testa. Rosaura ajeitou-se na cadeira, e disse:
- Eu não atirei em nenhum dos dois, apenas peguei a arma por medo, loucura do momento, sei lá. Fiquei ali, chocada, chorando.
Momentos mais tarde seu advogado de defesa tentou reforçar sua isenção do ocorrido.
- Rosaura, responda. Você estava infeliz?
- Sim, sim estava.
- Por isso teve um caso com o rapaz, Leandro?
- Sim, mas foi um erro, uma aventura boba de mulher carente. Meu único e grande erro. Nunca pensei em me separar de meu marido, nem de fazer algo que colocasse sua saúde em risco.
- A senhora amava o seu marido?
- Sim, nunca o deixei de amar. Abílio foi meu norte. Meu chão. Me sinto eternamente infeliz por tê-lo perdido dessa forma.

Após o interrogatório, os advogados fizeram o fechamento do caso. A acusação insistiu na hipótese de que a viúva não sabia da suposta falência e queria ficar com todo o dinheiro e o amante, enquanto a defesa argumentou que Rosaura era apenas vítima das circunstâncias, que fora movida por sentimentos comuns. Sendo assim, os jurados reuniram-se para deliberar sobre o caso e votar no veredicto.


Enquanto isso, nas três horas que demorou o processo, Rosaura pensou em Leandro. Estava apaixonada pelo garoto, mas era um amor impossível. Ficar com ele seria corroborar com a hipótese da acusação. E sem poder usufruir abertamente do dinheiro do esposo, desviado para calçar as afirmações de Dr. Jonas, seria apenas uma linda mulher de classe média sem amor. Desesperou-se.
Delegado Miranda chorava em silêncio. Em parte por receio da viúva ser absolvida, mas principalmente porque sabia, no fundo, que apaixonara-se por ela. “Deus, como eu desejo essa desgraçada”, pensou.
A criadinha se corroia de raiva, queria gritar o que realmente aconteceu, mas não queria se prejudicar, não enquanto esperava um filho de João. Engoliu um choro amargo de revolta, até porque ninguém acreditaria em uma criada de cor, tamanho era o preconceito. Nina estava apática, a qualquer momento temia ser descoberta. No outro lado o noivo prestava atenção no julgamento, o verdadeiro assassino, e um arrepio de pavor lhe paralisou, diante de tamanha frieza.

Então o júri retornou. Disse o Juiz:
- O Júri já tem uma decisão?
- Sim Meritíssimo. O Júri decidiu, por oito votos a dois, que a acusada Rosaura Albuquerque é inocente.
Houve protestos, gritos, choro. De toas as reações a de Rosaura foi a mais diferente. Não esboçou nada. Agradeceu ao seu advogado e retirou-se, queria trocar de roupa o quanto antes.
Na saída a imprensa cercou a viúva, ninguém acreditava que a mulher for absolvida. Havia uma pergunta que todos faziam: quem matou Abílio?


***


Nina Valdez acompanhou a repercussão pelos jornais. Atordoada, pois estava sentindo-se sozinha e acuada, pensou em fugir. Seu noivo Antônio, o dentista, agia como um louco, como se jamais tivesse dado e flagra e acabado com a vida de Dr. Abílio. Nina jamais mencionou o fato, e um dia, seria a esposa do dentista. Porém, no meio da confusão, recebeu uma visita de Rodolfo, o açougueiro. Ele disse estar com a pasta preta, com todos os documentos que provavam seu caso com Dr. Abílio, e disse que iria à polícia entregar tudo, segundo ele o que faltava para fechar o elo entre todos que estavam, supostamente, envolvidos no caso. Então, semanas depois, Rodolfo fora assassinado pelas mãos da própria Nina, e a pasta preta, queimada. Com isso, a polícia jamais descobriu o verdadeiro assassino do médico.

Quando tudo parecia ter ficado bem, eis que a casa de Rosaura Albuquerque amanhece submersa em um rio de sangue, mais uma vez, que escorria do quarto da viúva e ganhava a cidade. Pouco mais de quatro meses após o assassinato do marido e da morte do motorista da família, de Dr. Alberto e do açougueiro Rodolfo, Rosaura amanhece morta, com a fronte destruída por uma bala suicida, nua e indefesa, e a polícia achou surpreendente o fato da morta estar perfumada com Chanel N.º 5, um perfume único.

FIM



Acompanhe a repercussão do julgamento.
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Escrito entre 30 de maio e 07 de junho de 2006

Revisão 1: 11 de junho de 2006

Revisão 2: janeiro e fevereiro de 2012

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