Quando criança ela ouvia dizer que as estrelas eram pontos
de tinta. "Como pintavam tão alto?", perguntava.
Hoje, já uma velha golpeada pela idade, ri baixinho dessas
tolices.
Mas todas as noites, quando calça os chinelinhos e cobre a
camisola com seu chambre de matelassê verde e caminha pelo corredor se
arrastando até a porta do jardim, tudo o que vê no céu são, sim, os pingos amarelos de
tinta.
Nada mudou.
O tempo fez dela mulher, o tempo fez dela mulher casada, o
tempo fez dela mãe, o tempo fez dela viúva, o tempo fez dela mulher sozinha.
Mas a tinta continuava lá, sendo respingada no céu, como se
fosse uma obra de Pollock.
A solidão é amiga íntima da nostalgia.
Por isso que os anos mais recentes foram dedicados ao
resgate dos instantes apagados, rasurados ou deixados de lado no formato de
caixa de fotografias.
Os chás que bebia tinham o aroma da cozinha de sua mãe. O
sabonete de lavanda trazia de volta os banhos na banheira em que brincava de
oceano. Os sambas faziam ecoar nos seus ouvidos a voz do pai quando cantarolava
Cartola.
E a escuridão noturna servia pra lembrar de qualquer época.
Pois era nela que libertava o choro. Era nela que, renegada pelo marido, tocava
o próprio corpo. Era nela que, já viúva, se desfazia dos objetos dele. Era nela
que esperava o telefonema dos filhos. Era nela que, na insônia, pensava em
aprender a usar o computador, mas percebia que seu mundo eram os livros e os
cadernos de anotação. Era nela que sentia as dores no corpo se potencializarem.
Era na noite que reforçava a sua certeza de que estrelas eram gotas de tinta.
Numa dessas noites recentes, atordoada de calor, ela
caminhou até o jardim. Sem o chambre. Sentou no banco e observou o céu limpo.
Os olhos dela choraram lágrimas quase invisíveis. Talvez as lágrimas secassem
com o tempo.
Detestava a ideia de ser uma velha chorona. Mas esse era
outro ponto negativo da idade avançada. Pessoas velhas se tornam crianças em
muitos aspectos, incluindo a facilidade pra chorar.
As lágrimas encontraram os sulcos da pele e ali ficaram como
se fosse um pequeno reservatório.
De repente, olhando as estrelas, ela ficou assombrada.
Porque sabia, por meio de seu lado racional, que as estrelas que via naquele
momento já tinham morrido há muito tempo. Era um brilho de reflexo. Sentiu que
também estava um pouco morta.
Fechou os olhos e desejou se apagar.
Será que ainda era vista?
Pensou, enfim, que a solidão humana era um céu de estrelas desligadas.
16 e 17/8/2015
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