Antônia acordou numa manhã de inverno rigoroso. Fazia frio
Lá fora, porque no quarto do hospital a temperatura estava adequada.
Ainda não havia entendido que estava saindo de um coma.
Jogada de volta no próprio corpo, redescobrindo a consciência.
Tudo o que sabia era que estava em um ambiente limpo demais
para ser sua casa. Mas só lembrou que tinha casa, e até mesmo quem era, depois
de bastante tempo. Sua cabeça estava transformada num liquidador de imagens e
sons.
Não conseguia de mover. E ainda não sabia como chegara ali.
Perdeu a noção de quanto tempo ficou olhando ao seu redor.
Mas tempo já não era algo tão significativo.
Queria tocar o próprio rosto, para ter certeza de que estava
viva, mas não era possível. Nada em seu corpo respondia aos seus comandos.
Escrava de alguma sequela. Foi nesse momento que uma mulher vestida de branco
entrou no quarto. Deduziu que fosse uma enfermeira, e teve certeza de que
estava hospitalizada.
A funcionária viu seus olhos abertos. Em pouco tempo médicos
estavam no quarto, falando muito entre si. Ela não podia ouvi-los. Parecia uma
TV no mute. Eles checavam os aparelhos que ela, em sua posição na cama, não
podia enxergar, faziam exames preliminares, abriam suas pálpebras ao máximo.
Antônia queria dizer que estava bem. Queria perguntar o que
havia acontecido. Queria saber onde estava sua família e seus amigos.
E também onde estava ele.
Um bom tempo se passou naquele momento que pareceu ser a
descoberta da ciência, tamanho interesse em seu corpo recém desperto.
Mais tarde viu entrar, com euforia, sua mãe e sua irmã. O
resumo de uma família fragmentada pela distância ou pela morte.
A mãe, uma senhorinha de pele descascada pela ação cotidiana
do tempo, o mesmo que não sabia quanto havia passado, parecia estar mais velha.
Sim, as memórias chegavam como se uma represa tivesse sido aberta.
Imaginou que a preocupação havia feito estragos na mãe. Ela
chorava, um choro silencioso, pois nada conseguia ouvir. Ficou agoniada. Queria
abraçar ela, dizer que estava bem. Queria ir pra casa.
Sua irmã estava arredia. Na verdade nunca foram amigas. A
última lembrança que tinha dela foi num jantar de noivado. O noivado de sua
irmã. Não aprovava o noivo, conhecia suas histórias decadentes e erradas, e
tentou avisá-la. Só recebeu ataques como agradecimento.
Saiu do jantar apressada, querendo respirar. Foi quando
bateu o carro.
Lembrou.
E desde então sua vida é uma lacuna.
E ainda queria saber sobre ele.
Sobre ele as últimas memórias eram mais confusas,
entrelaçadas, saltando e voltando no tempo.
Lembrou quando fizeram a primeira viagem juntos para o
Uruguai, e depois lembrou de quando se conheceram. Em algumas lembranças ele
tinha o rosto diferente. No dia que o viu pela primeira vez ela estava deitada
na grama, olhando o céu. Ele a viu e, sem nenhum aviso, lhe carregou no colo. E
as lembranças se misturaram outra vez.
Onde ele estava na noite do acidente?
Ela não lembrou. Mas queria que ele estivesse ali.
Os médicos pediram que os familiares saíssem para que ela
pudesse descansar e, posteriormente, realizar novos exames.
Ficou sozinha.
Sem conseguir falar ou escutar os demais, ficou tão
agoniada, fez tanto esforço, que conseguiu mover os braços. Eram como membros
rígidos de um fóssil.
Apoiou-se na cama e levantou, a ponto de ver o quarto todo
girar. Sentiu que estava num abismo.
Quando pôde, saiu da cama e se arrastou até o banheiro.
Pareceu demorar horas. E quando chegou foi direto até um espelhinho colado na
parede.
Enxergou-se no reflexo e entendeu que muitos anos haviam
passado pelo seu corpo. Estava velha. Não podia dizer com quantos anos estava.
Nem reparou na diferença gritante no rosto de sua mãe, e nas mudanças de sua
irmã.
E ele, por onde ele andava?
Queria ir até a casa dele. Saiu do hospital sem que alguém
percebesse. Era noite. E frio.
Não sabia ao certo a direção que precisava seguir. As luzes
dos faróis dos automóveis pareciam cenas de um videoclipe acelerado. Desviava
dos pedestres, daqueles que a olhavam como se fosse maluca.
Andou muito, até não ser mais possível fisicamente.
E caiu no gramado de uma calçada.
Olhou para o céu antes de desmaiar e as estrelas se
embaralhavam, parecendo formar novas constelações que mudariam as orientações
astrológicas de personalidade. Foi a mesma cena que viu no dia do seu acidente.
Estava deitada na grama depois de ser jogada para fora do
carro. Olhava o movimento das estrelas. Até que ele apareceu, e a viu deitada
no chão. Carregou ela no colo. Foi assim que se conheceram.
E o resto é coma.
***
Ela nunca acordou do seu estado vegetativo. Nunca.
Estava sonhando conscientemente dentro do coma, em uma ponte
com a realidade que era possível enxergar, mas não cruzar.
Todas as lembranças com ele foram, possivelmente, imagens
aleatórias e inventadas de um desejo oculto e reprimido junto com as lembranças
da batida do carro.
E assim ela permaneceu lá, deitada no leito, como essas
princesas fantasiosas esperando alguém lhe dar um beijo na boca para acordar.
20 e 21/8/2015
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