quinta-feira, 13 de agosto de 2015

O Romance Datilografado






Ela entrou no quarto e ele datilografava em uma Olivetti vermelha.

Ele se julgava velho demais para usar um computador e novo demais pra escrever suas narrativas em um caderno, gastando punho.

Ela odiava quando ele carregava a máquina para a cama. Mas evitava confrontos. Aguentava o ruído das teclas pela madrugada.

Lá fora ventava umas lamúrias vindas do sul, onde morou na juventude.  

Ela se cobriu, e a luz gasta da luminária dele deixou o quarto com aspecto de sonho.

Eram sonhos o que ela tinha, foi luz completamente acesa o que ganhou.

De tudo, o mais irônico era que das teclas da Olivetti brotavam as histórias mais entrelaçadas, mais amorosamente escritas. Sua vida com ele não era, de fato, pano de fundo para narrativas.

Nunca foi.

Mas o tempo passa, pensou ela, e é possível se habituar com o ruído das teclas, a luz difusa e o boa noite automático.

É possível se habituar com o que nunca teve.

Não havia tempo para recomeços.

Mas todos os dias, quando deitava, e retirava os seus óculos de grau para dormir e passava, então, a enxergar tudo embaralhado, recolhia-se em um momento só seu. Uns minutos em que orava, mas não para os santos de devoção da juventude interiorana. Ela rezava para que qualquer uma daquelas doenças da velhice o levasse embora logo, que fulminasse com sua saúde de Biotônico Fontoura, que dizimasse na hora da morte cada ausência nunca transposta para o papel daquela máquina de merda, que varresse do mapa de sua vida aquele nome que não ousava mais dizer, que libertasse as suas noites da insônia de vê-lo se emocionar com cada parágrafo concluído, que queimasse no fogo do inferno as palavras cruzadas matinais, o jornal de esportes e os programas de auditório, que lavasse com ácido de sua memória cada sorriso de robô que ganhou, e que, por fim, pudesse dormir em paz.




13/8/2015 

Nenhum comentário:

Postar um comentário