Ela entrou no quarto e ele datilografava em uma Olivetti
vermelha.
Ele se julgava velho demais para usar um computador e novo
demais pra escrever suas narrativas em um caderno, gastando punho.
Ela odiava quando ele carregava a máquina para a cama. Mas
evitava confrontos. Aguentava o ruído das teclas pela madrugada.
Lá fora ventava umas lamúrias vindas do sul, onde morou na
juventude.
Ela se cobriu, e a luz gasta da luminária dele deixou o
quarto com aspecto de sonho.
Eram sonhos o que ela tinha, foi luz completamente acesa o
que ganhou.
De tudo, o mais irônico era que das teclas da Olivetti
brotavam as histórias mais entrelaçadas, mais amorosamente escritas. Sua vida
com ele não era, de fato, pano de fundo para narrativas.
Nunca foi.
Mas o tempo passa, pensou ela, e é possível se habituar com
o ruído das teclas, a luz difusa e o boa noite automático.
É possível se habituar com o que nunca teve.
Não havia tempo para recomeços.
Mas todos os dias, quando deitava, e retirava os seus óculos
de grau para dormir e passava, então, a enxergar tudo embaralhado, recolhia-se
em um momento só seu. Uns minutos em que orava, mas não para os santos de
devoção da juventude interiorana. Ela rezava para que qualquer uma daquelas
doenças da velhice o levasse embora logo, que fulminasse com sua saúde de Biotônico
Fontoura, que dizimasse na hora da morte cada ausência nunca transposta para o
papel daquela máquina de merda, que varresse do mapa de sua vida aquele nome
que não ousava mais dizer, que libertasse as suas noites da insônia de vê-lo se
emocionar com cada parágrafo concluído, que queimasse no fogo do inferno as
palavras cruzadas matinais, o jornal de esportes e os programas de auditório,
que lavasse com ácido de sua memória cada sorriso de robô que ganhou, e que,
por fim, pudesse dormir em paz.
13/8/2015
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